Não haverá mar
“E vi o novo céu e a nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.” (Ap 21.1)
Lá longe, numa linha imaginária, um cruzeiro branquinho deslizando no tapete todo “peludo de águas”, sob
um céu cinza alaranjado da praia de Itapema-SC, me deslumbrou. Depois, já escuro, a linha branca que se forma no
quebrante é linda.
Gostaria de vivenciar esses sentimentos milhões de vezes. Em Maringá só falta o mar. Se tivesse, seria lindo
falar ‘MAR-ingá’. Mas está a 518 quilômetros de distância dele.
Então, quando se está com os pés na areia, olhando as ondas indo e vindo, na alma me transbordam ondas
de alegria e medo. O oceano me ameaça devorar, mas está preso (Jó 38.1; Sl 93). Ao mesmo tempo eu me seguro
para não o sorver todo.
Aqui, diante de mim estão o Belo, o Sublime e a Arte. Para mim, praia é isso: uma mistura dos três. Filosofia
pura! Kant, filósofo alemão, disse que o sublime é o que causa espanto e admiração, o grandioso e até assustador.
Coisas da natureza que causam perturbação, pois, ao mesmo tempo que atrai o espírito, o repele. É um prazer
diferente. O belo, por sua vez, provém do acordo da faculdade subjetiva que atribui qualidade ao objeto, que não
corresponde exatamente com aquilo que se vê.
Todo esse devaneio me levou para as Escrituras. Como que uma coisa linda dessas não existirá na beatitude
(vida plena com Deus)? Há quem interprete esta passagem bíblica (“… o mar já não existe.”) significando que os
crentes, na Comunhão Eterna com Cristo, não mais necessitarão da água, tão vital aos seres vivos. É a mesma ideia
de quando o texto diz que no céu não haverá sol, pois, o Senhor será a luz (cf: Is 60.19 e Ap 22.5).
Porém, a ideia preponderante é a de que, no céu, nada do que nos afeta negativamente, que nos remete
ao mal, pode existir, pois tudo é o shalom1
(paz), a harmonia estabelecida perfeitamente. Com isso, a ausência do
mar no Nova Jerusalém pode muito bem remeter ao princípio da criação, em Gênesis (Gn. 1.1,2, 6,7). Aqui, antes
de árvores, peixes, pássaros, homens, tudo o que havia eram as tumultuosas águas preenchendo o mundo informe.
Assim, o que “preenchia” o mundo era o caos, a desordem. Esta é a visão de mundo que norteou o povo
de Israel: o mar é o retrato do caos, do indomável.
Como em Gênesis, a Palavra (do Seu Poder) organiza o mundo (Hb 1.3; Sl 33.6-9). Desnecessário dizer que
o povo hebreu tinha muito medo do mar. Não sabia muito sobre ele. Aliás, dominar o mar era dominar povos (1Rs
5. 8,9). E não é à toa que o Senhor Jesus andou sobre as águas, dormiu tranquilo sobre o mar encapelado, deu
ordens ao mar. Não é claro o que isso significou nas Escrituras (Sl 74.7,13,14;107. 23-32; cf. Mc 5.35-5.43)?
Quando se lê o Apocalipse, sabe-se que todas as desgraças insurgem do mar. A literatura apocalíptica traz
um simbolismo imenso para ele (Isa. 27.1;51. 9,10; 57.20; Dn 7.1-8,17; Ap. 12.9, 17; 14.8; 16.19; 17.16,17). Tem-se,
por exemplo, o belo Salmo 46. O Salmo infunde a certeza da presença de Deus. Porém, Deus é poderoso ao
defender o seu povo “ainda que os mares espumejem”. Isso sobressalta o pavor deste mundo inexplorável pelo
povo de Israel, não? Mar para este povo era o da Galiléia- um imenso lago! E olha que dava medo (Mc 4.35)!
Neste contexto, a existência de um mar na Eternidade seria o mesmo que esperar-se a paz só porque a casa
está cercada com arames, câmeras, armas e sentinelas. Ou seja: não existiria paz real.
Logo, o mar não mais existir no Novo e Céu e na Nova Terra é o símbolo da ausência da morte, do caos. E,
também caracteriza o velho mundo adâmico, quando o pecado desfigurou e inverteu toda a beleza criacional, e a
impingiu de um medo quase ateu, naquilo que fulgara a glória de Deus (Sl 19.1,2).
Ao cristão, frente ao mar, cabe o deslumbre das ondas que vão e vem lembrando que assim é a vida (“como
uma onda no mar”). Porém, um dia, só vamos. E lá, não mais existirá o mar, mas um oceano de infinita graça
disponível não apenas ao chafurdar de pé farofeiros na areia, mas ao mergulho completo sem nunca se afogar (Rm
11.33).
E, sem especulações, eu ficaria muito triste se no céu eu não pudesse chafurdar os pés na areia e sentir o
cheiro desse mundão azul (Ap. 21.8).
Eliandro Cordeiro
Itapema, 08 jan. 2025
Enquanto o mar existe.
1 Shalom é um conceito desde o Antigo Testamento que significa mais do que paz. Trata-se de uma harmonia estabelecida entre Criador e o homem. Oferece
um bem-estar em todas as dimensões humanas. Daí, pensarmos na ideia de harmonia perfeita com Deus, com os outros, consigo mesmo e para com a criação.