Ana tem que voltar para casa: o símbolo do ordinário
“[…] e voltaram, e chegaram à sua casa, em Ramá […]” (1Sm 1.19)
Não é extraordinário que a fé verdadeira viva numa realidade sem desejar maquiá-la? Sempre pensamos a
oração e a fé como graças de Deus que nos elevam à realidade opositora de nossa felicidade. Contudo, e se ambas
forem o suporte à introjeção da realidade; ou seja, o contrário: quanto mais se ora e mais se tem fé, mais ligado à
realidade o crente se torna?
A oração, a fé e a realidade – a liturgia da vida.
Sei que sempre que falamos de oração pensamos em viver o extraordinário. Mas, já percebeu que, na
verdade, oramos para suportarmos o ordinário, a rotina e o peso comum da vida?
A oração nos remete à vida ordinária (vida comum). Sobre o que Ana ora? Por que chora? Como o autor
(Samuel, o filho de Ana) descreve a relação de Ana neste triângulo amoroso? Ana tem de voltar para casa. Nesta
casa mora “a outra”. A mulher de oração sofre. Nesta casa ela tem de dividir a sua intimidade com outra família.
Que experiência linda tem Ana no templo. Mas, até que chegasse em casa e vivesse as tristezas daquele
relacionamento tumultuoso, não estaria grávida. A resposta à oração é encontrada na vida ordinária (comum): Até
a oração de Ana não foi extraordinária. Falava baixinho. Tal é que o que chama a atenção do sacerdote Eli é o fato
de não ver nela aquele comportamento típico de um israelita orando. Não há nada exuberante na forma como Ana
ora (v12-14). E, quando Deus, finalmente lhe dá uma filho, Ana não faz nada exuberante. Nenhuma peregrinação.
Ela cuida do menino, como uma boa mãe. Só depois o leva ao templo e conta o milagre. Ela sabe que Samuel não
nascerá se não “namorar” Eucana. Samuel é um milagre que nasce do ordinário: o sexo.
A fé no contexto da realidade: nem adaptação, nem exclusão – a vida.
Ana é essa mulher experimentada pela realidade. Ora conforme a realidade (fé e realidade moram juntas).
Ela não fantasia a vida. A fé em suas mãos não é um instrumento para fugir da realidade, mas para encará-la. Observe como esta mulher ora. O que ela diz a Deus em oração? Como ela descreve a sua realidade? Mas, como ela ainda “se arrasta aos pés de Deus”?
A condição ideal para orar.
A amargura profunda deveria impedir a mulher de orar, ou até mesmo levá-la a maldizer a Deus. A amargura
poderia impedir Ana de concentrar a sua atenção. Porém, Ana transforma a amargura numa oração cada vez mais
elevada. Esta ideia também ocorre na vida cristã, segundo o apóstolo: “Está alguém triste entre vós? Ore” (Tg.3.13).
A dor não surpreende a Deus. Mesmo angustiada e atribulada vai orar. E ela tem rival. É triste, mas pode
acontecer. Contudo, não cria um ambiente para o secular e o sagrado. Ela mistura os dois! A verdadeira fé suporta a
vida comum: “[…] e chegaram a sua casa […].” Não existe extraordinário na extraordinária vida da fé comum
(Hb.11.1). O homem de fé comum é quem é extraordinário. A vida comum cansa, abate. O homem sem fé se
desespera e a quer mudar a todo custo. Quer construir um mundo ideal. Mas, dificilmente encontrará de Deus nele.
Você percebe a alegria no ambiente de realidade crua (v6, 18)? Ana volta e dorme com o marido. O sexo é
instrumento de bênçãos por onde o milagre ocorreu. Ana é mulher de Eucana. Tem algo mais ordinário (comum) do
que representar a natureza humana na relação entre marido e mulher? Com exceção de Maria, a mãe do Salvador,
ninguém fica grávida sem sexo.
A resposta de Deus à oração de Ana não se dá mediante anjos, profecias, teofanias, como ocorreu à Sarah
ou à mulher de Manoá. Houve um silêncio não típico nas Escrituras quando envolve compromisso bíblico. Não houve
manifestação direta, nem indireta (visões, profetas…). Ana ouve só o silêncio de Deus. Contudo, sem som algum de
Deus na vida de Ana, o escritor nos explica que Deus age e confirma o pacto de Ana feito com Ele. Não houve teofania
na confirmação da súplica de Ana, pois Deus não lhe mandou um anjo, como fez com a serva de Sara, para confortála e garantir-lhe o atendimento do seu pedido. O que Sara ouve é o silêncio de Deus depois de ela ter se humilhado
diante Dele. Mas, sem que diga palavra alguma a Ana, Deus age em seu favor.
Jonas Madureira em seu livro, ‘Inteligência Humilhada’, afirma que “o homem que encontra paz, antes da
provisão, não é vencido pelo desespero, mas é tomado pela esperança, a esperança que sempre acompanha a paz
que precede a provisão. Ana era estéril, desnudou sua alma diante de Deus, mas nem por isso saiu grávida depois
daquele momento de oração. A provisão chegou somente depois. Mas e a paz? Veio antes, enquanto ela orava; …”
Em que a nossa vida é diferente da vida da mãe de Samuel? Talvez a diferença de Ana para nós esteja no fato
de ela não colocar a presença de Deus em extraordinário, mas no ordinário de sua vida. Evidente que Deus pode
falar através de anjos e e uma barriga que estufa de repente. Mesmo que aquilo que Ele tenha ouvido dos lábios da
mulher tenha sido confissão de dor, amargura… Tudo o que poderia indicar incredulidade. Mas Deus disse pela boca
de um sacerdote velho, com filhos rebeldes e desacostumado a orações sinceras: “Deus te abençoe”. Foi só isso que
Eli disse. De repente a mulher mudou a feição, alimentou-se e voltou pra casa. A mesma casa. O mesmo dilema.
Ana do Elcana, Nelson Rodrigues, Chesterton, cantando o verbo:
Elcana, marido de Ana, era um homem bom — mas talvez não bom o suficiente para compreender a dor
silenciosa da esposa. Ao dizer que valia mais do que dez filhos (1Sm 1.8), revela não apenas afeto, mas também uma
certa cegueira emocional. Ana, por sua vez, não se revolta: ora. E ora no silêncio, no ordinário, no chão da vida.
Nelson Rodrigues, o cronista da alma brasileira, acreditava que a vida real não era feita de idealizações ou
finais felizes, mas de contradições, traições e tragédias íntimas. Ele arrancava os véus da moralidade e expunha o
humano em carne viva. Sua coluna “A Vida Como Ela É…” não poupava ninguém. Segundo ele, “se cada um soubesse
o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentaria.” Nelson nos mostra que a vida não é um
palco de virtudes, mas um campo de batalhas interiores.
Chesterton, por outro lado, não nega a dor — mas a reveste de sentido. Para ele, o milagre não está em
escapar da realidade, mas em encantá-la. Em Ortodoxia, ele escreve: “O mundo não perecerá por falta de maravilhas,
mas por falta de encantamento.” Chesterton vê no cotidiano — no pão, na cama, na oração — o teatro da graça.
Enquanto Nelson revela o caos escondido atrás das cortinas, Chesterton acende uma vela dentro da casa.
Ambos falam da vida como ela é, mas Chesterton insiste: ela pode ser mais.
E então vem CantoVerbo, com sua música “Vida Comum”. Parece costurar Nelson e Chesterton numa
melodia de fé. Eles cantam: “Todo dia a mesma história / Acordar e ir pra escola, antes tomar um café, na mesa
oração…Um homem comum, uma mulher comum / Com seus filhos tão comuns, que milagre… Me diga, de onde mais provém a vida. Vivendo os seus defeitos, a perfeição pude encontrar. Foi vivendo os seus defeitos, que a perfeição pude encontrar.
Viver extraordinário de Deus pode exigir menos fé que o ordinário. Ao ler a história de Ana, descobre-se que
a fé não é a fantasia que mitiga a realidade. A resposta de Deus à sua oração acontece na ordinariedade da vida. Ela
tem de voltar para casa depois do culto (Chorou que foi uma beleza!). Ana volta para casa, ao lar em que há um
‘triângulo amoroso’. A resposta à sua oração acontece numa cama, ao manifestar toda a sua natureza humana.
A volta para casa é o ápice da fé. Não o milagre, não o culto, mas o retorno ao “lugar difícil” — carregando
nova disposição interior. Não significa ausência de medo ou preocupação com uma rotina que pode ser indesejada.
Nada mais extraordinário do que o crente que ama a sua vida apesar de arrumar a cama, lavar o carro, pagar aluguel
e brigar pelo último pedaço da pizza. E tudo isso com aquele semblante de Ana logo depois de orar.
Voltar para casa todos os dias pode ser uma manifestação ousada de fé.
Eliandro Cordeiro
Maringá, 25 de ago. 2025
“Dê-me mais um gole de ilusão Quero esquecer-me da realidade deste mundo” – Eu disse naquele culto.
Leram-me as Escrituras Não bebi nada!
Ouvi dos sofrimentos de Cristo Depois de um gole forte de fé Voltei para casa sóbrio. (Ef. 5. 18ss)
(Desculpe-me, Freud!)