“Não repara não, tá?”
Teologia da (Im)perfeição.
Devocional em Lucas 10. 38-42.
Jesus visita a casa de Marta e Maria. Marta, como boa anfitriã, se ocupa com os afazeres domésticos,
enquanto Maria se senta aos pés de Jesus para ouvi-lo. Quando Marta reclama da tranquilidade da irmã, Jesus
responde com ternura: “Marta, Marta, andas inquieta e te preocupas com muitas coisas. No entanto, uma só é
necessária. Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada.”
Ao ler os Evangelhos, você descobre que Jesus entrou em casas de ricos e pobres, religiosos e não-religiosos.
Jesus deve ter visto casas limpinhas e outras nem tanto. Porém, não acredito que Ele procurava saber o menu, ou
esperava pelo cafezinho. Tampouco, o cheirinho de pão no forno o impressionava (Cf Lc 4.4). O que lemos Dele é
que o seu foco, o interesse, era as pessoas.
Os Evangelhos escrevem Jesus falando, percebendo, prestando atenção e reparando em pessoas – o
coração. Não sei como Ele conseguia ouvir as pessoas ao mesmo tempo em que os seus corações falavam outra
coisa. Mas sei que Ele ouvia os dois simultaneamente.
Esta é uma casa em que Ele não faz uma simples visita. Ele chega com balde, sabão, vassouras… – não para
limpar o chão, mas o coração. Essa limpeza não se trata de pecados cabeludos. Ele precisa reorganizar algumas coisas
fora do lugar nessa casa. Tem gente ali pendurando quadros demais e há aquele quase TOC de limpeza? Talvez.
O comportamento de Jesus, nas casas em que entrou, sempre foi como na casa dos seus amigos. Ele não
reparava o supérfluo. Em cada casa ele via um aspecto da alma humana. Na casa do rico Simão, Jesus repara o seu
pensamento oculto. Na casa do Zaqueu, a sinceridade, o arrependimento. Na casa de Pedro, o foco é a enfermidade
da Sogra. Na casa de Jairo, no quartinho da menina, Ele fala com ela. Logo, cada casa em que Jesus entra revela um
aspecto do coração humano — e da atenção divina. Jesus não é um visitante casual.
Ao visitar os três irmãos, Jesus não está interessado em uma casa impecável. Ele quer presença, escuta,
intimidade. Ele não repara na bagunça da casa — repara na alma de quem o recebe. É Marta que chama a atenção
de Jesus para que repare noutra coisa: “Não te incomoda que a minha irmã me deixe sozinha trabalhando?
Então, já que o caso é reparar… Jesus diz à ela o que viu em seu coração: “Marta, Marta, andas ansiosa e
afadigada…”. Ansiedade e fadiga, é o que o Senhor vê, não na casa, mas em Marta (v.41). Este dom divino do Senhor
de conduzir –nos para a direção oposta do supérfluo é encantador!
A mulher fala, mas Jesus, como um cardiologista da alma, percebe o coração arrítmico. O Homem/Deus
desloca o foco da performance de Marta para a presença. A moça ansiosa não está errada, mas está distraída (E eu
não falo da Maria. A distraída é Marta.). Não há equilíbrio entre a ação e a contemplação.1
É importante saber fazer o bom uso do momento. Isso exige discernimento. Pedro, no monte da
Transfiguração, queria fazer o que Maria fazia em sua casa: “Bom é estarmos aqui. Quer que façamos três cabanas…”
(Lc 9.33). Jesus o censura. Logo, Jesus não é contra Maria. Fato é que não aproveita o momento. Já Pedro não quer
tirar o pijama (Lc 9.37-43).
O que Jesus espera das anfitriãs?
Que o recebam com simplicidade e verdade;
Que estejam disponível, não apenas ocupado;
Que ofereçam atenção, não apenas serviço;
Que abram a casa da alma, não só a porta da sala.
Santo Agostinho sempre foi meio contracultura! Amante da metáfora, ele: “É pequena a casa da minha alma
para que tu venhas a ela: que seja ampliada por ti. Está em ruínas: reforma-a. Contém coisas que ofendem teus olhos:
digo-o, sei-o. Mas quem a limpará? Senão tu?” (Confissões, I.5)
Em Volta Redonda- RJ, como em tantas cidades brasileiras, há um costume curioso: o anfitrião limpa a casa,
prepara o melhor, mas quando o visitante chega, diz com humildade: “Não repara não, tá?” Essa frase carrega um
gesto de afeto e vulnerabilidade. É como se disséssemos: “A casa pode não estar perfeita, mas o coração está
aberto.”
Mas Jesus não adotou este costume. Ele diz: “Na casa de meu Pai há muitas moradas… (Jo.14.2): “Reparem
em tudo. Nenhuma sujeira, nenhum pecado… Tudo limpo, tudo nosso!”
Interessante que, enquanto Jesus não repara na casa das irmãs, deseja que a casa repare Nele! Para o
Senhor, recebê-lo em casa é, na verdade, sermos recebidos na casa Dele. Ele nos deixa bem à vontade.
A “simples” visita de Jesus à casa de amigos nos fala da “espiritualidade do cotidiano”. Onde as críticas ao
irmão ou amigo não são, necessariamente, rechaçada, mas elaborada, redirecionada. Revela a simplicidade do
1 Talvez Lucas tencione que essa passagem seja um paralelismo, apontamento, para Deuteronômio 8. 1-3. Nesta passagem o povo de Israel aprende que não deve viver só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca do Senhor.
Mestre que, embora seja Deus, cultiva os laços de amizade, valorizando o outro apesar de. Ele é o amigo em que,
nas conversas íntimas, muda o ponto de vista do outro para o que importa. Elogia e corrige.
Lucas transparece aos leitores que a visita de Jesus à casa de Marta e Maria não é um evento extraordinário,
mas um momento de revelação no ordinário. Isso nos lembra que o sagrado pode habitar o simples. Um coração
soberba não ama simplicidade. Este coração exige beber um ‘Bordeaux das Colinas de Golã’ (Inventei!) em copo de
cristal. Jesus, porém, só quer um café no copo da Cica. Ele É Aquele em que, pode visitar- nos na segunda-feira e
comer o frango do almoço de domingo e a gente fica numa alegria danada! Depois, como os voltarredondenses, a
gente diz com sinceridade: “Não vai não, Jesus. É cedo!”
Senhor, Dê-nos o discernimento do teu Espírito para que o nosso coração nunca saia do compasso.
Ficaremos felizes se, ao visitar o nosso coração, haja pouca coisa para esfregar, colocar no lugar…
Contudo, Senhor, Repare sim. No melhor sentido do verbo ‘reparar’, repare. No cultural, também repare. Olhe tudo! Que o meu desejo de te agradar seja maior do que a nossa vergonha.
Em teu nome, Amém.
Eliandro Cordeiro
Maringá, 26 de set. 2025.
Depois que Jesus foi embora…
Marta: “Maria, você limpou o que eu te pedi?”
Maria: “O que você me pediu? Quando?”
Marta: “Affff”