A santidade das coisas comuns.

Devocional em Zacarias 7.5–6; 8.4–8; 14.20–21
Conta-se que, ao ser perguntado o que faria se soubesse que o mundo acabaria amanhã, Lutero respondeu:
“Plantaria uma macieira.” Ainda que não haja registro direto dessa fala, ela expressa com beleza a esperança ativa
que permeia sua teologia – uma fé que cultiva o hoje, mesmo diante do fim.
Há uma verdade que atravessa séculos: “fazei tudo para a glória de Deus.” Lutero não mudaria nada em sua
vida em detrimento da vida vindoura. O sagrado não está restrito ao púlpito ou à oração, mas percorre o cotidiano –
como uma centelha divina escondida nas tarefas simples. Em Jesus, vemos isso em plenitude: o que era comum foi
elevado ao sagrado, para que o sagrado não se tornasse algo banal.
E é justamente nesse entrelaçar de fé e cotidiano que Zacarias nos convida a enxergar o sagrado onde antes
víamos apenas rotina. A começarmos pelo jejum.
O jejum como forma de consagrar-se é uma prática conhecida entre os cristãos. Mas, se oferecermos a Deus
o comer e o beber (1Co 10.31)? Essa pergunta inquieta, porque revela que até os atos mais cotidianos têm peso
espiritual. Soa estranho falar que comer e beber podem ser tão sagrados quanto o jejum (cf. Zc 7.5–6)?
Há algo profundamente espiritual na forma como nos relacionamos com os alimentos. É certo que, para
algumas pessoas, a bulimia e a gula, por exemplo, não são apenas distúrbios alimentares — elas revelam uma busca
de saciar o vazio da alma com o material. O corpo come, mas é a alma que grita. Paul Holmes propôs que muito do
que sentimos, mas não conseguimos nomear, se manifesta involuntariamente em ações, gestos e escolhas — é o
que ele chamou de “o mundo interior vivido por fora” (HOLMES, 1996). Essa exteriorização simbólica torna visível o
que, em essência, permanece oculto ou indecifrável.
A Escritura, porém, nos conduz a um banquete eterno com o Senhor na Nova Jerusalém. Comer e beber é
parte da comunhão, não apenas da sobrevivência. É um culto à bondade do Criador (Ap 19.9).
Sabe, quando leio Zacarias 8.4–6, penso em como é difícil para muitos cristãos aceitar o prazer como parte
da religião. A tua diversão pode ser tão santa quanto a reverência nos cultos. Há reverência no culto, sim — mas será
que também sabemos rir para a glória de Deus?
Para Piaget, o jogo é um pré-exercício das funções adultas (PIAGET, 1978). A criança, ao brincar, está
simulando papéis, testando limites, desenvolvendo empatia, criatividade, autocontrole e até espiritualidade. Um
artigo sobre o papel das brincadeiras no desenvolvimento infantil afirma: “O jogo é para a criança o que o trabalho
é para o adulto. Pelo jogo ela desenvolve as possibilidades que emergem de sua estrutura particular […] une-as e as
combina, coordena seu ser e lhe dá vigor.”
Por alguma razão, esse assunto me ligou imediatamente ao livro “As coisas da Terra”, de Joe Rigney (RIGNEY,
2017). Penso que os prazeres terrenos – como brincar, comer, festejar – são ensaios da eternidade. Rigney reforça
que os dons da criação não são obstáculos à santidade, mas meios pelos quais Deus nos prepara para o gozo eterno.
Para ele, “Jesus não apaga o brilho das coisas da terra – Ele brilha através delas.” Acho que é por isso que
temos tanta saudade da infância: a infância brinca o céu antes que o céu se revele plenamente. E não se engane, o
cotidiano, o comer, brincar, trabalhar- não é neutro: é parte de uma ordem criada que reflete a glória divina, como
ecoaria H. Dooyeweerd.
Zacarias descreve uma cidade restaurada: crianças brincando, idosos em paz nas praças. Deus se alegra com
a vida que pulsa (Lc 15.32). Sua presença não exclui a alegria, mas a abraça. Para J.K. Smith, a vida inteira é uma
“liturgia” – nossos gestos diários são também parte do culto (SMITH, 2015). Ele leva essa visão até aos shoppings,
que funcionam como mega-igrejas modernas, com suas próprias liturgias de consumo e formação de desejos.
Logo, tudo é simplesmente religioso. Alegrar-se com discernimento, rir com gratidão, celebrar com santidade
– isso também é espiritualidade.
E se você acha que Smith exagera, Zacarias diz que não. Nos versículos quatro a seis, “o Senhor atribui tanto
significado milagroso a esses eventos como fazem as pessoas espantadas”, explica o Comentário Broadman (1986,
p. 450).
Tudo o que Deus criou tem propósito. Desde o boi que trabalha no campo até as vestes sacerdotais do
templo, tudo carrega a marca do Criador. Em Zacarias, vemos os sinos dos cavalos com a inscrição “Santo ao Senhor”
– a mesma que enfeitava a tiara do sumo sacerdote. Objetos antes usados na guerra agora são consagrados ao culto.
A mulher que prepara o almoço da família realiza um ato de adoração semelhante ao serviço sacerdotal. O
erro está em reduzir a criação à coisa mesma, esquecendo que ela aponta para Alguém.
Não é uma visão panteísta, mas a percepção clara de que nada existe por acaso. Quando até os sinos dos
cavalos trazem a inscrição “Santo ao Senhor”, tudo que era profano se torna consagrado. Onde Deus reina, tudo é
sagrado (cf. Zc 14.20–21).
Assim, podemos afirmar que os afazeres do dia a dia podem ser tão santos quanto o serviço eclesiástico. É
como um sinal da unidade de culto que combina a unidade da teologia e o ser espiritual de Deus (Zc 12.9).
Lembra da ira do Nosso Senhor no templo, virando mesas de vendedores (Mc 11.15ss)? Sabe, quando Deus
se tornar Rei sobre todos os corações, o comum será santificado. Mas, para o cristão, Cristo – ao rasgar o véu do
templo – destruiu com Seu tecido roto a divisão entre o sagrado e o profano. A promessa é que toda a Terra será
afogada sob o peso da glória do Senhor (Hc 2.14).
Eric Liddell, corredor olímpico e cristão devoto, recusou-se a competir no domingo por fidelidade ao seu
compromisso com Deus. E ao justificar sua paixão pela corrida, disse: “Quando eu corro, eu sinto o prazer de Deus.”
Essa frase grita a verdade de Zacarias: o sagrado não está confinado ao templo -ele pulsa nas praças, nos jogos, nas
escolhas diárias.
E você, também sente Deus sorrindo-lhe quando vai ao culto ou jogar bola? No teu jardim, ao “escavucar” a
terra, plantar uma rosa, quando ora ou faz a farofa, você O ouve as gargalhadas lá no céu?
Das receitas simples no fogão às equações exploradas pelos cientistas da Nasa; dos exercícios escolares às
brincadeiras nas pracinhas – tudo vive sob o peso da glória de Deus. O que Deus uniu – céu e terra, culto e cotidiano
-não separe o homem.
Eliandro Cordeiro
Maringá, 20 de out. 2025
Senhor, Que a Tua Glória me seja tão leve, Que eu não pense ser pecado Dar boas gargalhadas Em Cristo, Amém.
