Ao chegar ao fim da história.
Devocional em 2 Sm.23.1-7
Davi, ao fim da vida, oferece suas últimas palavras. Não são apenas despedidas; são revelações sobre o que
realmente importa diante de Deus, da morte e da eternidade.
Ao chegar ao fim da história, tudo o que fica são as palavras. Palavras na memória, nos lugares de costume
por onde o que se foi andou, nos móveis da casa, no filho, na mulher, no amigo, nas paredes… Palavras na dor e até
no concreto. A verdade é simples e profunda: tropeçamos mais em palavras do que em túmulos. Tropeça-se no
silêncio das palavras que o outro deixou.
“All my love” é uma música do Coldplay que gosto. Especialmente o vídeo oficial. A música, Dick Van Dyke, o
dançarino de Dançando na chuva é especial para mim. Ora imagens dele jovem, ora idoso, cantando com Chris
Martin, não é só melancólico, beira ao profético para aqueles que se assustam com o Tempo, mas descansam no
Senhor do Tempo.
Um anacronismo quase perfeito de Davi na cama, mãos trêmulas segurando o séquito e Salomão ensaiando
a coroa na cabeça. Esta passagem das Escrituras, em especial, mostra a efemeridade do poder, seja lá de quem for.
O homem que derrubou o gigante, agora é derrubado pela poderosa Idosa do milenar vestido roto. Enquanto o
futuro homem mais sábio do mundo se prepara para que, mesmo com toda a sua sabedoria, repetir as palavras
sopradas pela Idosa: “Tudo é vaidade…”
Divido com vocês três pontos em especial neste texto com três lições. Pode parecer que o assunto se desloca
de uma análise sobre o poder para o reino da gramática; um giro gramatical que nos lança, feito Chapéu-Mexicano
de parquinho vagabundo, à hermenêutica da vida. Mas, sempre entendi pelas Escrituras, que o Poder se revela na
(s) Palavra (s) (Gn 1.1ss; Jo 1.1ss; Hb11.3).
I- Os grandes homens já foram pequenos (1a).
Deus lembra a Davi de onde veio antes da certeza de aonde vai.
1- “filho de Jessé”: Davi tem umbigo! Foi o filho de Jessé quem derrubou o gigante; ou foi o pequeno gigante
quem derrubou um pigmeu?
2- “foi exaltado”: Ora, cresceu; não nasceu grande. Davi não nasce rei, se torna. A sua história correu longo
período às margens do trono antes de fazer dele um mar de vitórias.
Nenhuma grande história começa com glória. Começa com o ordinário que Deus transforma em
extraordinário.
II- A palavra é imortal; o homem se eterniza por ela (1b).
Davi não morre em silêncio — ele fala. Isso revela que o ser humano transcende pela palavra, pela memória
que ela perpetua. As últimas palavras de Davi… Por que não morre em silêncio? Por que falar? O homem não
sobrevive (nem mesmo na morte) sem palavras.
O mundo é palavras! Se por um lado, é a palavra que dignifica o homem frente à criação, por outro é o que
lhe aponta a finitude, pois tem que se representar por símbolos e não por aquilo que é.
A fala é nossa herança. É o que deixamos quando partimos. O mundo é feito de palavras — e nelas, o homem
continua existindo A palavra humana espelha a Palavra divina que cria e encerra. A palavra do homem não é
eterna em si mesma, é em Deus que se eterniza. Ou os louvores na vida beatífica não serão construídos
com as palavras que o coração dos redimidos cantará com partituras ou com notas sem as manchas do
pecado? Devem ser lindas as palavras limpas, naquele dia, no sangue de Cristo Mt 12.36,37).
III- A vida é sempre/toda ela Teodramática (1c,2).
A expressão “Teodramática” sugere que a vida é uma narrativa onde Deus é o grande Autor. O Espírito do
Senhor fala por meio de Davi. Os acontecimentos não são aleatórios: há um enredo, há direção divina.
Vivemos num palco divino, cada cena escrita pelo dedo de Deus. Nossa história se entrelaça a Dele. E aqui
volta-se a lembrar de Davi como o filho de Jessé. Assim é o homem por toda a sua vida. No fim, não há trono e
sempre se morre um filho de. Aos olhos de Deus, há uma história que acontece sem hora e tempo: Há um rei que
morre menino. Sempre morre o filho de Jessé.
O homem é o único ser dentre as criaturas de Deus que não surgiu de Sua Palavra (“haja, e…”), mas, de suas
mãos, criado do barro. Contudo, com palavras, retorna ao pó, de onde surgiu. Como se disse: eis o que fica quando
vou: palavras.
Deus não só cria tudo mediante a Palavra; Ele também encerra tudo mediante ela. Ao menos é para o
mundo, quando do juízo, e subjetivamente, o livrinho de cada vida se fecha — como o de Davi, como o seu, como o
meu.
Ao chegar ao fim de sua história, Davi não fala como um rei – fala como um homem, um pai, como alguém
que diz ao seu filho o que deve escrever em seu próprio livro.
O poder não está no trono – está no Verbo.
O poeta ficou cansado
Pois não quero mais ser Teu arauto.
Já que todos têm voz,
por que só eu devo tomar navios
de rota que não escolhi?
Por que não gritas, Tu mesmo,
a miraculosa trama dos teares,
já que Tua voz ressoa
nos quatro cantos do mundo?
Tudo progrediu na terra
e insistes em caixeiros-viajantes
de porta em porta, a cavalo!
Olha aqui, cidadão,
repara, minha senhora,
neste canivete mágico:
corta, saca e fura,
é um faqueiro completo!
Ó Deus,
me deixa trabalhar na cozinha,
nem vendedor nem escrivão,
me deixa fazer Teu pão.
Filha, diz – me o Senhor,
eu só como palavra.
Adélia Prado
Eliandro Cordeiro
Maringá, 04, ago. 2025
Nascemos falando o que nem sabemos
Morremos falando coisas das quais sabemos – ou não.
Até o Senhor nasceu e aprendeu as palavras.
Morreu sabendo perfeitamente bem quando as usar.
Foram sete, muito bem empregadas!
Só não sabemos se as palavras aprenderam quem eram com Ele
o que significavam,
Ou se aprenderam com Ele – quando as explicou.