“Basta cada dia o seu mal” (Mt.6.34).
Sofrimento é uma palavra proibida em nossa sociedade. A ditadura da felicidade ignora que a felicidade surge
incitada pela interrupção do mal-estar ou o “aconchego” da dor. O que a sociedade faz é maquiar o sofrimento, a
dor e a ansiedade com a “Mary Kay do Coringa”. Mas, qualquer amanhã chuvoso borra a cara e o sorriso se inverte.
Certamente Jesus foi o Homem mais feliz do mundo. Porém, com igual certeza, Ele foi o que mais sofreu (IS
53.1ss). Fico pensando em como muitos hoje ouviriam essas palavras vindas dos lábios do Senhor lá no Monte das
Oliveiras: “cada dia o seu mal …”. “Nossa… Ele estava falando tão bonito até agora.” “Que homem pessimista! Esse
pregador não tem fé…”
De fato, para muitos, depois de ouvir uma série de mensagens em que Jesus afirma a vitória dos fracos, o consolo
dos que sofrem e o cuidado de Deus, ouvir de um amanhã que nos acorda eirados de segurança e mal não parece
vir dos mesmos lábios, né? Porém, Jesus não vê contradição alguma naquela vida em que acorda sorrindo e dorme
com as lágrimas. Antes, aponta para onde os corações dos crentes repousa esperançosos.
Quero compartilhar com você a prazer de ler o capítulo seis de Mateus cujas palavras consoladoras de Jesus são
poderosas o suficiente para não amedrontar os crentes que lhe aceitam toda a Palavra. E faço de um modo simples:
Como Jesus encarava os males do dia a dia? Elenco três considerações práticas.
1. Jesus sempre foi realista.
Fé não é alienação, ilusão ou fuga da realidade. Os dias sempre vêm. Os anos passam e a velhice chega. O passado
se acumula e o futuro diminui quanto mais avançar. Cada dia como uma luta por vez, já que para cada dia há um mal
(nenhum dia é igual ao outro).
Portanto, não acumule cuidados do passado, muito menos os cuidados do futuro (Sl.94.19). Ele alertou os seus
discípulos acerca do quanto sofreriam por amor a Ele. Deu a Pedro a notícia do quanto sofreria no futuro. Portanto,
ser realista nada tem a ver com incredulidade. A realidade não dissipa a fé e nem a fé é a utopia para que aguentemos
a rudeza da realidade. A fé não é a droga dos ignorantes (crentes). A fé são os óculos pelos quais podemos ver a mão
de Deus em todos os acontecimentos deste mundo. É o cobertor que nos aquece no tratamento frio que recebemos
neste mundo, além de ser a cama da certeza que nos permite descansar os corpos cansados e levantarmos no dia
seguinte renovados.
2. Jesus conseguia ver a mão invisível de Deus agindo até mesmo no amanhã eivado com o mal.
A providência é, segundo Calvino, “a mão secreta de Deus”. Jesus deixa implícito não o domínio do mal, mas a
providência de Deus por trás das lágrimas. E não é disso que Jesus fala? Não é assim que se encerra o seu discurso
sobre o fim da ansiedade quando o crente consegue ver que Deus está em tudo o quanto lhe acontece? Não é só,
então, que é vista a inutilidade da ansiedade (Mt 6.25ss). Assim, tudo o quanto nos era necessário saber para vivermos
este dia (mal) foi-nos dito nos versículos anteriores. E o que esses versículos nos dizem?
Jesus cria na sabedoria de Deus. Esse não erra na conta. Deus conta os cabelos dos carecas, o banquete dos
pardais, as míseras moedas de ouro de Salomão e a riqueza indelével das pétalas do lírio escondido no campo. Ele
conta cada um dia. Ele enche de detalhes uma segunda-feira cinzenta sem se perder em um único sequer. Quando
“cada dia o mal” pinta de cinza o arco-íris, Deus molha a terra de novo e remove a velha tinta do pecado com o
vermelho-sangue de Jesus!
Para Jesus, o arco-íris não conta que choveu e fez lama. Antes, o arco-íris fala do poder de Deus em romper o
céu cinza-chumbo com o colorido de Seu caráter depois de lembrar aos homens que os seus pecados não são fortes
o suficiente para os afastarem de Si.
O mal é uma realidade fadada ao desaparecimento no Último Dia. Enquanto isso, ele não vence, mas
desempenha tudo o quanto corrobora para o seu próprio fim. É como o fogo que, quanto mais forte, mais calor
emite, prenuncia o seu rápido apagar.
3. Jesus não era levado a ver mais o mal do que o bem.
É interessante perceber que Jesus fala de “dia mal” e não em “vida má”. É cada “dia”, e não cada vida. Por quê?
Porque nada saiu das mãos de Deus! Jesus não se perdia com as coisas ruins ou com notícias tristes do dia1
. Ele via
as coisas certas, mesmo em horas que, para muitos, pareciam erradas. Jesus via passarinho e flores na hora de
necessidade (Quantos, em seu dia mal, conseguem ver a beleza refletida pela ação da luz nas lágrimas que lhe correm
na face?). É a fé que faz-nos, quando de joelhos, ver flores e pássaros no jardim da aflição (No Jardim, antes da cruz,
Jesus se preocupa com a orelha de um homem!). Como o Senhor via o amanhã? Ele o via como hoje. E como é isso? É saber “Deus está aqui”. Está agora, não
ontem e nem amanhã (Sl 46.1). Se ontem Deus cuidou de mim, e se hoje eu tenho o pão que Deus me dá, amanhã
terei o pão que hoje Deus me deu. Releia a oração que Jesus ensinou aos seus discípulos. Não é à toa que Mateus
coloca tal oração antes da solicitude da vida. “O pão de cada dia dá-nos hoje” vem antes do “não andeis ansiosos”.
Portanto, cuidado; o mal não precisa estar no pão que o diabo amassou.
O mal pode se esconder no pão que não é recheado com o queijo de búfala do Vale da Canastra. Pode estar
presente nas inseparáveis irmãs: ingratidão e incredulidade. Essas podem te soprar aos ouvidos: “Será que amanhã
você comerá o pão com o queijo? Está difícil viver nesse mundo, viu? Essa história de comer pão com manteiga todo
dia. Você precisa trabalhar mais e se cercar dos cuidados necessários!”
Se existe um mal maior do que a ansiedade, provavelmente, é a ilusão de acreditar que receber as bênçãos do
Senhor é a garantia de não sofrer. Ora, se eu parafraseasse o “basta cada dia o seu mal” em nosso contexto, seria
algo mais ou menos assim: “Não vos inquieteis (…) o amanhã vem e vocês não o impedem (…) aceite o mal de
amanhã amanhã. Não o antecipe, pois ficará pesado demais para o beber em um só gole (dia). Um dia de cada vez.”
Então, não é um simples otimismo para se superar os dias difíceis; é a confiança de que Deus está cuidando de
tudo. O amanhã é inevitável não por si mesmo; ele é inevitável porque Deus o dirige para um fim mais elevado. É
nisso que os crentes confiam. É isso que Jesus viveu e ensinou ao ponto de ir para cruz depois de uma noite em
oração. Ou seja, Jesus encarou o amanhã seguinte não com o otimismo ingênuo, mas com a certeza de que o plano
de Deus é sempre perfeito e a alegria prometida invadiria o seu túmulo frio antes mesmo que os anjos suspeitassem
(Hb 12.2,3).
Contra toda falsa esperança, eis a certeza vinda dos lábios do Senhor: “amanhã toparei com o mal em algum
momento”. Porém, contra todo o mal, a certeza presente em todos os versículos anteriores nos lábios do Senhor: “o
mal não é maior do que o gracioso cuidado do Deus.”
É na coragem de se viver o amanhã e na certeza da derrota do mal que se observa a fé genuína. É nesta fé que
o homem se levanta para o trabalho, a mulher limpa a casa e a criança vai para a escola. É nesta fé que Salomão
inveja o Lírio, o crente desacelera para ver a flor na beira da vida, e eu vejo o pardal entrar em minha cozinha, roubar
migalhas e fugir satisfeito diariamente.2
Eliandro cordeiro
Maringá, 23, jan, 2025
Com a certeza de que o mal de amanhã não me será a antecipação do de depois de amanhã.