Esquecer e crescer
“[…] Deus tem me fez esquecer de todos os meus trabalhos e de toda a casa de meu pai […]. Deus me fez próspero (crescer) na terra da minha aflição” (Gn 41.51,52).
Não basta esquecer o passado, é necessário crescer direção ao futuro.
Você reparou que, nestes dois versículos, para as duas citações da palavra sofrimento (trabalho, aflição),
José os precede com a palavra ‘Deus’. Na primeira, referente ao seu passado, Deus está à frente. Na segunda citação,
Deus permanece à frente. Ou seja: quer para com o seu passado ou para com o futuro, Deus está à frente.
Ao dizer que esqueceu a casa do pai, José não significa abandono, mas que aquilo que os seus irmãos lhe
fizeram não é mais um problema para as memórias do seu coração.
Para muitos, esquecer-se do passado e apagar o futuro. Curaram-se das feridas do passado, mas seguem
mancando na fé — como se o trauma tivesse passado pela pele, mas travado os passos da alma. Não sangram mais,
mas também não avançam.” Evidentemente que ao dizer “Deus me fez esquecer da casa de meu pai” não significou
apagar da memória o mal sofrido pelos seus irmãos. Tem a ver com o modo em que Jose cuidou do solo do seu
coração. Na terra de aflição José fez germinar (com os nomes dados aos seus filhos) toda semente de fé aprendida
com o pai, Jacó. Deus igualmente não se perdera da memória do “Zé”. O homem associa a sua história à fé aprendida
em casa: deu nomes hebraicos significando a presença de Deus com ele.
Fico surpreso com essa maneira quase simbólica de José manifestar a presença de Deus em seu triste
passado. Uma lição genuína de como lidar com o passado. Dar nomes como estes é semear o futuro? O esquecimento
o qual José vivencia não nega raízes, mas transforma a dor em propósito. Olha para trás e enxerga o futuro; olha
para frente e reconhece o peso do que viveu, mas não carrega mais o medo de repetir a dor. A memória já não é
prisão quando o Espírito de Deus acompanha José ao passado.
Você quer esquecer? Deus preceda o teu passado. Você quer crescer, apesar do sofrimento? Deus
permaneça à frente, no teu futuro. Muitas vezes pedimos a Deus para que cuide do nosso coração ferido pelo
passado, porém, para com o nosso futuro de planos, deixamo-O ainda no passado. Medo de Deus não nos livre da
próxima dor? Medo de que Ele tenha um propósito com o seu sofrimento- e não apenas um livramento imediato?
José se diz curado das dores do passado. Prova disso é que prospera, cresce no presente. Ele trabalha, casa,
é pai de dois garotos, interpreta sonhos, fala de sua morte (Hb 11.22). José não “deixou pra lá” o que sofreu- ele
perdoou.
Ora, uma planta ferida, se não cicatriza, apodrece. Não haverá flores ou frutos. A seiva se esvai, o caule
endurece, fibras se mostram, o verde desbota e o tom amarronzado denuncia o fim. Mas, se a ferida cicatriza, ainda
que com marcas, o vigor retorna: folhas novas brotam, o verde revigora. O crescimento anuncia a vitória da
plantinha. Assim foi José, e assim é: “Deus me fez crescer na terra da aflição”. A sementinha rompe o solo agreste
mesmo sob o sol em dia sem nuvens.
Ora, crescer na terra da aflição não só mostra o quanto a gente pode tirar da terra seca frutos. Também
mostra que, apesar de prosperar e crescer, a aflição pode persistir tanto quanto o crescimento. Talvez, implique que
algumas curas são ocorridas com perseverança, luta e paixão à vida por parte do ferido.1 Esqueça a ideia de que a
gente só cresce depois de a dor passa.
C. S. Lewis escreveu em algum lugar (não lembro onde e que isso não me faça parecer aqueles que escrevem
reflexões em para-choques de caminhão!): “Devemos deixar que Deus cuide da ferida e parar de espiar por baixo do
curativo.”
O relato final da biografia de José não é um homem ferido, mexendo em casquinhas de machucado. Ele vê
a cicatriz, mas se lembra de quem a curou. A sua história tem Deus no passado e no futuro. Por isso, sempre O teve
no presente (“E Deus era com José”, Gn 39.2,3;22,23): Deus no passado para esquecer; Deus no futuro para crescer;
Deus no presente para viver. Manassés e Efraim são filhos da terra de aflição, mas tem nomes de gratidão. Lamento
se você diz lá dentro de sua alma: “Eu também dei nomes às coisas… só que nomes de dor.”
Esparadrapo não cura ferida. É apenas profilaxia para evitar contaminações. Há remédio certo para cura.
Que tal entregar ambas as pontas da linha da vida – passado e futuro – nas mãos d’Aquele que caminha conosco
agora, mesmo quando o coração se nega a perdoar? Você não se cansa de arrastar o passado para o futuro e perder
tudo o quanto Deus pode no presente pode te dar? Pode aplicar isso ao teu coração?
Eliandro Cordeiro
Mgá, 01, jun. 2025
1 Sem intenção alguma de tornar a passagem bíblica uma oportunidade coach, mas realista: “O nome de Manassés, embora, quanto ao significado, se relacione ao verbo esquecer, não é a mesma palavra usada a respeito do copeiro em 40:23. Aquele verbo significava esquecer devido a descuido. Este é um verbo forte, com o sentido associado de desertar ou negligenciar. Como sugere von Rad, pode significar não tanto que ele esquecera a sua família anterior, como que agora o seu filho preencheria o vácuo atormentador de seu coração. Contudo, a ideia também podia ser que ele desejava esquecer o passado. Ele já sofrera o suficiente. Se assim é, o escritor da história de fato 328 revela aqui as suas reservas pessoais a respeito do comportamento de José.”
Comentário Bíblico Broadman: Velho Testamento, JUERP, 1987, p. 328.