“Eu não sou como…” Uma infeliz gratidão
“Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens… nem ainda…” – Lucas 18.11
“Oh, meu querido Eu! Sou-te indubitavelmente grato por tudo o que eu mesmo conquistei com os meus esforços.
Querido Eu, Tu não me deste o mesmo destino que o meu irmão. Este não teve a sorte de alcançar o que alcancei, tão
inteligentemente.
Obrigado por me dar forças para disfarçar a humildade do mEU poder, proveniente de sinapses e sabedoria produzida sem qualquer dependência de mEUs “pares” (Na verdade, sou ímpar!!).
Definitivamente, não tenho o propósito de humilhar aqueles que não têm o que tenho com tanto esforço.
Em nome de ‘jEUsus’, agradeço.
Amém.”
De certa forma, foi esta a oração que o fariseu fez ao lado do publicano. Jesus disse que “ele orava de si para
si mesmo”. Eu sou grato de fato?
Chamo de infeliz gratidão a falsa gratidão que nasce da comparação com o outro, não da consciência da
própria miséria. Ela se alegra por estar em melhor condição, não por ter recebido graça. É orgulho disfarçado de
piedade.
Não se é grato por comparação externa, mas por percepção da sua própria natureza. Ser grato por ter mais
que o outro (riqueza, saúde, status) é uma distorção. Isso é mérito, não gratidão. A gratidão autêntica nasce da
percepção da própria condição — não da superioridade em relação ao próximo. Aliás, ela seria contra-intuitiva, nesse
sentido.
Gratidão é reconhecimento da própria natureza; não da natureza alheia. Ela brota do coração que se vê
como necessitado, falho, dependente da Graça. É uma resposta à revelação de quem se é diante de Deus.
Contudo, a gratidão não é uma percepção monologal (v.11): não é de si para si, mas de mim para um outro
a quem considero superior. Não é um diálogo interno de autoafirmação. É dirigida a um Outro — Deus — que é
reconhecido como superior, fonte de tudo.
Isso ecoa o gesto do publicano, que não ousa levantar os olhos, mas clama por misericórdia. Claro que a
gratidão se reporta, se relaciona para com outros, contudo, não por comparação onde se é maior, antes, se vê como
menor- como aquele que recebe porque o outro tem para lhe dar. E o outro dá por graça, não obrigação.
Ser grato por ter mais que o outro (riqueza, saúde, status) é uma forma de orgulho, não de gratidão.
A gratidão exclui autoconfiança (v.9) nos coloca desesperadamente nas mãos de Deus (v.13). Como no
versículo 9, a confiança em si mesmo leva à condenação. A verdadeira gratidão nasce da dependência, da entrega
desesperada nas mãos de Deus (v.13).
Evans sugere que a gratidão do fariseu é uma ilusão (uma infeliz gratidão), pois, “fica implícita em sua oração
de gratidão a ilusão de que ele é reto… O fariseu não tem uma percepção real de sua própria pecaminosidade e
indignidade diante de Deus, pelo que demonstra uma apreciação inadequada da graça de Deus (EVANS, C.A.
Comentário Bíblico, 1996, p. 305).
A gratidão pressupõe uma certa humildade (14). Pois, se você é grato a Deus porque tem mais do que o
vizinho, isso é comparação, mérito, mas não é gratidão. Se você é grato porque pode dar ofertas ao passo que se
sente bem porque não está no lugar daquele que precisa, isso é comparação, não gratidão.
Também não busca exemplos fora do próprio coração para se justificar merecedora. A gratidão é como a do
publicano: Tudo o quanto recebe só aumenta o desespero da dívida contraída pelas mãos da Graça. Você já pensou
o que significa ser devedor da graça de Deus? É uma dívida impagável! E, mesmo assim, Cristo nos leva para o céu
com essa dívida!
A Graça sabe humilhar os milionários. Aos soberbos ela os deixa subirem a fim de que aprendam com a
queda – já que a soberba precede a ruina (Pv 16.18,19). Quanto aos humildes, ela os deixa bater no peito e se
desesperarem – não é o correto? Ela não é um prêmio a nenhum dos dois – nem aos soberbos, nem aos humildes
(Rm 9.16-19). O fato de Jesus ter dito que o publicano desceu justificado não o põe em melhor condição da Graça
que o fariseu. Se você pensa que o republicano mereceu ser ouvido, perdoado, você ainda entende a gratidão como
fruto de comparação externa, e não como obra de Cristo no coração do homem (Mt 6.3).
Já me senti grato muitas vezes (E com muito orgulho!). Mas um dia, parado no semáforo perto do mercado
onde costumo fazer compras, vi uma mulher com seus filhos pedindo esmolas. E ali, naquele instante, percebi algo
desconfortável: minha gratidão parecia mais orgulho disfarçado do que a manifestação natural de uma vida piedosa.
Entrei no mercado com esse pensamento martelando. Será que eu estava apenas agradecendo por não estar
no lugar dela? Por ter o que ela não tem? Dar algo àquela mulher não seria uma forma de aliviar a culpa ou mais
interessado no meu prazer de poder ajudar do que a alegria de ver a mulher bem? Não há erro em sentir prazer ao
ajudar o próximo. O problema está em quando esse prazer se torna o único motivo. Para o cristão, o prazer é a
consequência e não o motivo.
Percebi que a verdadeira gratidão não se alegra por estar em melhor condição que o outro. Orei ali, grato,
por Cristo ter me feito perceber que aquela gratidão era, na verdade, uma sutil forma de orgulho. Senti-me
endividado por tamanha graça que Cristo me deu, sem me pedir contas.
A gratidão cristã não é uma celebração do que se tem em relação ao outro, mas um reconhecimento humilde
do que se recebe apesar de si mesmo. É uma resposta à graça, não uma afirmação do mérito (2Sm 7.18-20).
Como o publicano, o coração grato bate no peito e clama por misericórdia, sabendo que tudo o que tem é
dom — e não conquista (1 Co 4.7).
Eliandro Cordeiro
Maringá, 03 de set. 2025
“Eu acho que sou grato, Senhor.
Pelo menos… mais do que muita gente por aí.
Humildemente agradeço por ter visto isso em mim.
Amém”