
“Ele me faz repousar em pastos verdejantes” (Sl 23.2a).
Um salmo de bastante intimidade. O salmista sempre dizendo que Deus é o ‘meu’ pastor. A linguagem
metafórica é rapidamente compreendida. A figura rústica, agrícola, é marcante à mente até mesmo das criancinhas (Deve ser por isso que até em ‘biroscas’1 o salmo é escrito na parede: até ébrio entende!). Rapidamente nos identificamos à figura da ovelha que precisa dos cuidados do ‘seu’ pastor. A gente meio que assume o lugar de Davie balimos os cuidados de Deus. Difícil ler o salmo e não criar um cenário na mente, não é?
Embora por todo este salmo Davi é a ovelha que rouba a cena por causa do impacto imagético que nos causa, é do Senhor que ele fala. A beleza do salmo, às vezes, pode ser atravessada por momentos difíceis enfrentamos.
Unir a beleza poética (e relacional com Deus) pode ser duro quando o primeiro versículo parece contradizer o espaçovazio dentro do nosso armário. Elisabeth Eliott disse que “Deus prometeu suprir todas as nossas necessidades. O que não temos agora, não precisamos agora.” O que parece ser uma dificuldade para muitos cristãos, unir a desagradável realidade do versículo 4 e coadunar com o primeiro versículo, não é contraditório aos olhos da ovelha. Para o salmista, o versículo 1 em nada destoa do versículo 4. Seria a ideia de que uma ovelha sabe menos do que lhe é necessário do que o seu pastor? Sei que é isso mesmo.
A ovelha que anda por pastos verdejantes e beira às águas tranquilas sabe que, de um ao outro pasto,
precisará cortar um vale sombrio (Jo 16.33; Fp.4.11,12). Ela sabe que é um vale de sombra da morte (v.4)? Mas,
entre a sombra do pastor e a da morte, aprendeu que a sombra desta é pálida, distante (1Co.15.55), enquanto a
sombra do pastor é a certeza de um presença real, viva (Sl 121.5; Lc 24.5). Doutro lado o Sol brilha (Gn.32.31).
Sabe, Davi usa da sua vivência de pastor de ovelhas e metaforiza a sua necessidade de cuidado divino ao
desvelo que dedicava às suas “meninas”. Tomou do seu próprio amor e compromisso para com elas e aplicou-os a Deus. E nada, depois das Escrituras, pode nos dar mais segurança do que a piedade proveniente da nossa experiência de comunhão com Deus (cf. Sl 119; 1Sm 17.34-41).
Prestei atenção às atitudes da ovelha deste salmo. Observei que o único momento em que ela poderia ter
feito alguma coisa (e não o ‘seu’ pastor) o fez andar “andar pelo vale de sombra da morte. O que eu quero dizer com isso? Enquanto eu tentava entender algumas coisinhas em minha vida baseadas em o “nada me faltará”, gritava-me a alma: “Eu não consigo repousar” (v.2). Pensar naqueles momentos em que algumas coisas pareciam ter me faltado era menos urgente do que o grito silencioso: “Eu não consigo repousar!”
Deixei o que fazia e retomei a leitura do salmo. Apenas o versículo 4 sugere que a ovelha tenha feito algo
por si mesma: ela andou (vale da morte), mas logo endossa que “não temerei” (duas coisinhas). No mais, é o pastor quem mais age em cada versículo: guia, providencia, refrigera, prepara a mesa… Davi, a ovelha, apenas repousa, descansa e é protegido.
Fico imaginando que para o rei de Israel (um dia pastor de ovelhas) não fora fácil deixar-se conduzir pelo
‘Seu’ Pastor. Com tantas decisões, guerras, problemas familiares… ser Rei-Ovelha não era fácil! Deve ser por isso que alguns salmos seus relatam o seu clamor por urgência nas ações de Deus, né (Sl 3.7; 7.6; 13.1; 44.23; 70.1)? Mas, no final desses salmos, Davi diz que lhe foi melhor esperar em Deus.
Repousei os meus olhos no cenário montado por Davi: é uma visão de ovelha. E essa ovelha só vê o ‘seu’
Senhor agir, o seu amor e bondade a conduzi-la (v.6). A passividade da ovelha denota o maravilhoso pastor. daí
que nada falta e o vale sombrio não apavora. A ovelha olha para trás e só se vê perseguida pela bondade e
misericórdia (v.6). É só a ovelha quem repousa; o pastor não (Sl 121.3-5; Is 60.4; Jo 10.14-18).
Percebi que muitas das inquietações me sobrevêm por tentar ver as minhas necessidades com os olhos do
pastor, quando, na verdade, a ovelha só pode ver o mundo de baixo para cima. É vendo o ‘seu’ pastor de baixo para cima que a ovelha vê o mundo como deve ser visto. Desta altura a ovelha só faz o que é próprio do ovino fazer. O ponto de sua visão lhe mostra que tudo lhe vem das mãos do ‘seu’ pastor.
O que uma ovelha sabe do seu próprio mundo? Coisa triste é ovelha achar que sabe a direção ou o melhor
pasto para se satisfazer (Jr10.23). Felizes as que voltam nos ombros do seu Pastor. Pois, além de não saber ir, agravalhe a natureza de nem ao menos saber voltar (Lc 15.4ss)! A ovelha só consegue repousar se confiar no cuidado do ‘seu’ pastor e abandonar a pretensão de ver melhor do que Ele (IS 40.11). Da posição da ovelha, vê-se mais a mão do ‘seu’ pastor do que a Sua cabeça, né?
Eliandro Cordeiro
Maringá, 08 de abr; 2025.Pela graça, no aprisco
1 Termo carioca para designar barzinho que só vende cachaça, ovo cozido, sinuca, toca Amado Batista e coisas dessa natureza.