A Alegria de Deus
“[…] e o monstro marinho que criaste para nele folgar.” (Sl 104.26)
O mundo criado não é um capricho de Deus; é a manifestação da Sua Alegria.
O Salmo está mencionando o livro de Gênesis, o quinto dia da criação, quando os
grandes animais foram criados e povoaram as águas (Gn 1.29). Em sequência, salta o período
criacional e desenha-nos uma imagem conhecida até mesmo de nós: os navios singram os mares
rumo aos seus destinos e o mundo todo- homens, animais, vidas pequenas e grandes- esperam
de Deus a provisão.
A existência de toda a criação é para a glória de Deus; é fato.1 É uma consequência da
crença na criação, conforme a fé judaico-cristã, que devamos enxergar a natureza não como
algo simples, mas como uma realização. E, portanto, no conceito de criação, a gloria de Deus é
o Seu deleite Santo em aprovação a tudo o quanto foi criado mediante o Filho (Jo 1. 1ss; Cl 1.16).
Pode-se pensar que a existência dos seres neste mundo é de servil glorificação a Deus.
Contudo, o que o Salmo expõe é que Deus não apenas se deleita com tudo o quanto criou, mas
compartilha de tal deleite para com os homens. Assim, o Seu Deleite, Alegria, para com a obra
criada é, por si só, motriz de glorificação ao seu nome.
Cada obra da criação tem o “humor divino”. Traz consigo não apenas a perfeição, mas a
bondade de Deus. Ora, se Deus nada criasse, o que perderia? Mas, bondosamente “criou a
existência” e nos pôs nela, por mais pura bondade. E “bondade é a comunicação de felicidade.”
Lewis afirmou que “a coisa mais valiosa que os salmos me trazem é a expressão desse
mesmo prazer em Deus que fez Davi dançar.”2 Mas, se me permite a imaginação, nos Salmos
não é apenas Davi quem dança. Neles, bem como, em toda a Escrituras, Deus dança. Ele ama
festas! Não entendo o porquê Nietzsche nunca viu o Deus das Escrituras dançar.3 Quem não
conhece Parábola do filho Pródigo? Que pai festeiro (Lc15.11ss)! Ou, então, aquilo que os
teólogos chamam de “A dança da Trindade”?4
Nos Salmos Deus não apenas é o Soberano, o Rei, Perfeito e Onipotente; é também o
Deus-Alegria, O Prazer. Deste modo, o convite para o louvor a Ele é igualmente um chamado à
participação de Sua Alegria. Oh! Que não nos percamos no Poder do Nosso Senhor, sob o custo
de perdermos o convite do Salvador: “[…] venham a mim […] que sou manso e humilde de
coração” (Mt 11.29). Que o Seu Grande Poder não nos assuste ao ponto de admirarmos mais a
força do que o coração. Uma criancinha ignora os músculos do pai, exceto por saber que os
braços paternos nunca lhe permitirão cair. Apesar de fortão, é o amor do pai quem a segura
firme.
1Eis a pergunta de “O Breve Catecismo de Westminster”: “Qual é o fim principal do homem?” Ao que respondemos:
“O fim principal do homem é glorificar a Deus e alegrar-se nele para sempre.” Mas, perguntamos: “Qual é o fim
principal de Deus?” Respondemos: “O fim principal de Deus é glorificar-se e e alegrar-se em si mesmo eternamente.”
Esta devocional não pretende desconstruir essas verdades; antes, corroborá-las ao afirmar que Deus convida os
homens a se deleitarem Nele e em tudo o quanto criou.
2 LEWIS, C.S. Lendo os Salmos.Viçosa, MG:Ultimato, 2015, p. 53.
3 NIETZSCHE, F: Assim falou Zaratustra (Ler e Escrever). “Eu não acreditaria num deus que não soubesse
dançar.”
4
Pericorese: uma palavra para o nome de uma dança tradicional em que um grupo de pessoas. Geralmente crianças,
dançava de maneira circular e de mãos dadas. Uma criança ficava no meio enquanto as outras, de mãos dadas,
cirandavam ao seu redor. Em certo momento a criança que estava no meio vinha para a roda e alguma da roda vinha
para o meio. Damasceno (676d.C.) foi o primeiro a associar a Trindade como uma dança- dança eterna e uniforme.
Entrelaçadas em unidade circular estão em constante movimento e integração. O Deus trino é completamente
perfeito e completo em sua relação amorosa e intensa entre Pai, Filho e Espírito. Essa completude entre as Pessoas
da Trindade é suficiente em si mesma (plena em alegria e satisfação). Desnecessário era criar o homem como
complemento à Felicidade Sua. Mas a criação é um convite, um convite a todos os homens para entrar em uma dança,
a dança da trindade, e participar da felicidade da vida.
Tem gente que só interpreta o Livro dos Salmos como uma ordem divina: “Ou vocês me
adorem ou tirarei de vocês toda a alegria e transformarei os teus mundos num inferno.”
Deveriam ler as Letras divinas como um gotejar de alegria que despencam lá das nuvens,
decorrentes dos olhos angelicais quando contemplam Toda a Delícia falar-lhes do Seu Amor. E
eles poderiam pensar: “Se eu fosse um desses homens por quem Cristo morreu, me molharia
sob essa chuva de Amor e me afogaria de tamanha Alegria.
Lamento, mas,
A infeliz ideia que Deus deveria, de um jeito ou de outro, precisar da nossa
adoração ou deseja-la da mesma forma como uma mulher vaidosa deseja
receber elogios, ou um autor vaidoso oferece seus novos livros a pessoas que
nunca o conheceram ou ouviram dele, é implicitamente respondida com as
seguintes palavras: “Se eu tivesse fome, precisaria dizer a você” (Sl 50.12).”5
Ah… Como o Senhor Onipotente é cheio de Alegria. E como poderosamente pode
derramá-las sobre os filhos quando em tribulação! A alegria do cristão pode, sim, ser uma forma
de louvor a Deus. Piper disse que “Deus é mais glorificado em nós quando estamos mais
satisfeitos nele”. A ordem nos Salmos para que O glorifiquemos pode significar perfeitamente
um convite para que O adoremos.
Logo, desfrutar Dele e do que Ele criou é glorificá-lO. A natureza grita-nos não ser a dona
de sua própria beleza. Ela nos aponta Àquele que a tingiu com respingos de Sua glória. Tal glória
é refletida enquanto Deus prazerosamente mira a face perfeita do Seu Filho. A natureza é
apenas um espelho desse amor trino (Sl 8.3-6; 102.25; Ef 2.10); é reflexo pálido da Trindade.
Deus cria os grandes peixes dos mares e folga neles. Ora, mesmo os maiores são nada
para Aquele que nem céu e nem terra O pode conter (2Cro 6.18). Por que Ele se alegra com
seres que nunca existiriam se não por Ele, sendo Ele Mesmo a própria Alegria? O que
acrescentamos Àquele que de nada tem falta? Este é, para mim, um dos maiores mistérios. Todo
o mundo é um grito à sua Beleza e Perfeição. Mas também é um convite absurdamente bondoso
para fazermos companhia a Ele (Sl 115.16; Mt 25.34). Não porque a Sua Solidão lhe seja carência,
mas porque ninguém se lhe pode comparar (Is 46.5,9). Ele é único.
Corra agora para o teu jardim e sinta a alegria de Deus quando coloriu as pétalas da rosa
que você plantou. Tome aquele cafezinho com um pouquinho da alegria que Deus sentiu ao
soprar nos ouvidos do homem que lhe descobriu fórmula: “Torre essas sementinhas. Moa.
Jogue água fervente sobre elas. Dê uma boa fungada nesse aroma que dela sobe. Agora, tente
beber sem sentir a minha alegria.” Difícil, né?
Se Deus ao criar o gigante dos mares o fez e sentiu a alegria, o que ele sentiu ao te criar?
A alegria divina para com o mundo criado nos põe em uma posição segura de que não somos
algo perdido no caos (Gn 1.2,3). Em Deus, nenhuma alegria é desperdiçada. Tem sempre um
cevado guardado para a necessária alegria (Lc 15.32).
Se você não for capaz de glorificar a Deus com as coisas por Ele criadas (tal como Ele se
alegra), duvido que consiga de algum outro modo. Se não conseguir ver Deus sorrindo com cada
coisa que criou (tampouco, com as tuas alegrias), metafísica alguma te definirá o que é
felicidade.
Aliás, definir felicidade só satisfaz aos filósofos da linguagem; a gente não. A gente quer
mesmo é saborear a alegria.
Eliandro Cordeiro
Maringá, 15 de nov. 2024.
Preciso aprender a dançar