
Travesseiro
Mas Jesus lhe respondeu: As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a
cabeça” (Lc 9.58).
Era domingo. Eu lavava a louça do almoço quando o versículo atropelou a minha mente e a jogou sobre o
meu coração: “O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça…” “Mas Jesus tinha travesseiro” – acho que foi o
meu coração quem disse. E comecei a pensar nos Evangelhos à procura do tal travesseiro (Mc 4.38).
Evidentemente que a passagem não fala de travesseiros (em Marcos a almofada não é nada de especial)! Fui
imagético, uma metáfora. O meu coração ignorou a hermenêutica e exegese do texto.1
Só desejava o travesseiro
que cismou que Jesus tinha. O meu coração estava mesmo era ávido pela hermenêutica da vida.
2 Nele havia uma
admiração pela apaixonante Pessoa do Salvador. “Como Jesus diz com tranquilidade que não tem onde descansar?
Que paz é essa (Paradoxal!)? Jesus não tem um travesseiro para descansar a cabeça à noite. A cabeça do Mestre está
cheia das verdades sobre os homens. Sabe de todos os seus pecados e pensamentos (Mt 9.4; 26.34,35; Jo 2.25;21).
Ele sabe da cruz e mesmo assim dorme tranquilo ao lado daqueles que o abandonarão (Mt 17.22; Jo 6.70; 13.3)?
Todas essas ideias gritavam à minha mente enquanto o detergente fazia o papel dele.
Ora, sei que o texto se organiza sobre a trajetória do Senhor caminho a Jerusalém (percurso da morte de
Jesus). Os versículos deste capítulo esclarecem que seguir a Cristo é sofrer o mesmo desfecho. Essa viagem de Jesus
simboliza, de forma limitada, “o caminho do Senhor”; isto é, o padrão que um discípulo de Jesus deve imitar. O fim
do caminho é o Calvário (Lc 9.23; Mc 10.52c). Fica certo que há um custo elevado em ser discípulo de Jesus. Por isso
o capítulo despreza qualquer prioridade que não Jesus, e termina com “não pode mais olhar para trás” (Lc 9.62).
Mas, o meu coração só repetia para mim: “Ele não tem onde repousar a cabeça, mas tem um travesseiro …”
Onde estava tal travesseiro? Que Paz! Que Segurança Ele demonstrava! Onde Jesus se desesperou? Nem mesmo na
cruz! A morte não o surpreendeu; Ele rendeu o espírito (Lc 23.46). Passava noites em vigílias e pela manhã não tinha
mal humor. Onde escondias o teu travesseiro enquanto oravas no Getsêmani (Mt 26.36-46)?
Ao ouvir o que o coração contava-lhe, a minha mente dobrou os joelhos e orou ali mesmo, com sabão e
água:
Ó, Senhor! Dá-me esta tua segurança que demonstrou em cada passo quando aqui neste mundo. Este nos
rouba o sono. Dá-me o teu travesseiro para que eu também repouse a minha cabeça, seja lá onde for.
Dá-me o teu sono. Aquele mesmo que tivestes ao dormir seguro no encapelado mar (Mt 8.24-27). Os teus
discípulos desesperavam-se na tempestade noite a dentro (Mc 4.37,38). E o Senhor dormia pesado; cheio de
segurança e poder Divinos. Duvido que o teu cansaço fosse maior do que a tua segurança. O mar era pequeno demais
em tuas mãos. O vento, bem provável, fazia cócegas em teus cílios.
E, desperto pelos gritos dos homens (duvidosos que tu te importavas com eles), a mesma paz com a qual
dormias, ordenou que o vento e o mar se calassem.3
Fez-se silêncio (Mc 4.39)! Silêncio menor do que aquele feito nas
almas daqueles pescadores. A incredulidade se calou (Mt. 8.27).
O Filho do Homem que não tinha um travesseiro tem a submissão do mundo! O Filho do Homem “sem-teto”
tem um Reino (Dn 7.13,14, cf Mt 25.31-34) Quem é o louco de se opor Aquele que faz do mundo inteirinho o seu
telhado (Rm 11.36; 1Co 15.27)? Aquele que não tem casa é o abrigo dos homens (Mt 11.28; Jo 12.32).
As criaturas que fizestes têm casa, mas tu dormias ao relento (2Co8.9). É bem verdade que o Senhor morou
numa casinha em Cafarnaum, mas, sempre andou de um lado para o outro (Mt 4.13; Mc 2.1). Nem sei se tivestes
tempo de pendurar um quadro na parede, escrito “O Senhor é o meu pastor”.
Não tinha casa na praia, como alguns gananciosos inventam. A tua profissão de carpinteiro também não te
era enriquecedora (Mt 13.55). E, se o fosse, darias aos pobres- Eu tenho certeza (Mt 19.21)!
Senhor, dá-me só o teu travesseiro (Jo 14.27)!
Quero dormir na tempestade (IS 50.10), deitar-me onde os lírios crescem (Mt 6.28).
Senhor, estou tão cansado e não durmo. Preciso descansar junto à fonte de Jacó (Jo 4.6-11). Espera-me ali?
Aliás, aquela pedra que Jacó usou por travesseiro deve ter recebido de Ti. Descansando nela ele viu anjos.
Como ele, eu também quero sonhar com as escadarias do céu (Gn 28.6-11). Com o teu travesseiro qualquer lugar é
céu para mim (Gn28.16-18; Sl 4.8).
E, quando eu morrer, quero estar com a cabeça sobre o teu travesseiro. Duvido que a Morte o retirará de
mim (Jo 11.25,26)! Com ele sob a nuca, eu me despertarei igualzinho ao Senhor! Deixarei tudo dobradinho (Jo 20.7)
como sinal de que ali dormiu um humano- nem fantasma ou anjo- um homem (Jo 20.27-29).
1 Hermenêutica é a ciência e arte de interpretar um texto (bíblico), enquanto e exegese é a verificação do sentido do texto dentro de seus contextos históricos
e literários.
2 O termo se deve a W. Dilthey (1833-1911). Dilthey entendia que as ciências humanas precisavam de uma razão hermenêutica, um método para captar o que
é distinto da experiência humana. Logo, a mente humana é de outra natureza e a Ciência humana nada a conhece.
3
Jesus é o Jonas antitético. Jonas dormia no porão do navio enquanto fugia de Deus. Na tempestade tomado de medo e pavor. É lançado ao mar a fim de não
pôr em perigo a vida dos tripulantes. Jesus, pelo contrário, dormia no barco em plena obediência a Deus. Como Deus, mar e vento lhes são facilmente
dominados. Jesus não só sabia que não morreria, Ele não teme a morte. Deus-Pai e Jesus se identificam plenamente nesta passagem de Mc 4.
Todavia, deixarei a porta aberta, como o Senhor (Mt28.2) Ficará claro que nenhum homem a abriu. Foi Deus
quem retirou o meu corpo dali (Jo 11.43 cf: 11.25). Como ao Senhor, nada mais me prenderá neste mundo (1Co 15.42-
58).
A morte não tem a chave do quarto onde durmo. A chave é tua, Senhor (Ap 1.18). Eu sou teu (Sl 119.94; Rm
14.8). E, mesmo assim, nunca me prendestes aos meus pesadelos. Antes, despertou-me do meu torpor com a tua
presença (Sl 139.2). Foi assim também que fizestes à menininha em seu quartinho (Mc 5.41), a Lazaro (Jo 11.43) e
aos discípulos de carne fraca (Mt 26.41, 45).
Eu só quero o teu travesseiro. Quero-o não para fugir da realidade, mas para a enfrentar como o Senhor.
Em teu nome peço,
Amém.
Eliandro Cordeiro
Maringá, 02 fev. 2025.
Queria ter o sono de Jesus: pesado de tanta paz.