Antimilagre: transformando pão em pedra.
“Se és o Filho de Deus, ordena a esta pedra que se transforme em pão […].” (Lc 4.3)
“Se tu és o filho de Deus, transforme este pão em pedra” (Versão Bíblica de um irmão antimilagrista).
Ceder à tentação de satanás pode ser o mesmo que transformar as bênçãos(pão?) de Deus em pedras (lutas,
dificuldades).
Muitos lutam para não transformar pedra em pão, porém, ao longo da caminhada, quando as bênçãos
parecem demorar e o viver só da Palavra de Deus é muito exigente, a pessoa não vê dificuldade alguma em reclamar
e duvidar da bondade de Deus. Isso seria transformar o pão em pedra.
Sei que a inversão que fiz entre pão e pedra pode ser perigosa. Contudo, sustento o mesmo princípio
hermenêutico do texto. A inversão (“transformar pão em pedra”) manifesta a sutileza demoníaca em transformar
coisinhas e verdadeiras pedras de tropeços. Além disso, pode transformar o essencial em motivação errada e fútil.
Um pão é menos do que Deus e uma pedra menos do que pão. Contudo, com a motivação errada, basta-nos um
pão para transformar Deus em pão e pedra em Deus! Pois, enquanto a tentação original é a de usar o poder divino
para satisfazer uma necessidade legítima fora do tempo e da vontade de Deus, a inversão dos simples substantivos
(pão e pedra) sobressalta o risco de desfazer o que Deus já fez — de transformar o milagre em murmuração, a bênção
em peso, o pão em pedra.
Gosto de pensar tal transformação à avessas como Antimilagre. Ele carrega a ideia de que, ao ceder à
incredulidade, à impaciência ou à reclamação, podemos inverter o fluxo da graça. Podemos, em vez de ver o pão
como provisão, vê-lo como fardo. Em vez de confiar na Palavra, exigimos sinais. E isso, de fato, é um “antimilagre”:
não a ausência de Deus, mas a distorção daquilo que Ele já deu.
Jesus não foi tentado com elemento sobrenatural. A sua fome era real, existencial. Existe algo mais natural
do que pedra? Algo mais fantástico do que semente que se mói até ao pó, depois, leva-se ao fogo e vira uma massa
crocante?
Grosso modo, a fome não é de natureza moral ou teológica, mas existencial. O que Satanás faz ao tentar o
Senhor, exceto sugerir que este fizesse algo em favor de si mesmo? Transformar pedra em pão é bênção. Uma coisa
inanimada em um espetáculo químico-físico é a prova da existência de Deus! Além do mais, o diabo apresentou uma
solução ao problema de Jesus naquele deserto. Portanto, a questão não era a fome, mas o fim dela (as soluções!).
Era uma possibilidade “natural”, lógica, humana, até.
Contudo, quando o pão vira pedra, a tentação é reversa. O natural (o pão) é tratado com desprezo, o simples
é ignorado, pisado até endurecer. Ora, porque não transformar mais um pão em pedra? “É só um pão”, pensamos
enquanto a alma despreza-o roncando alto pelo banquete do imediato.
Aos cristão mais experientes, é pleonasmo afirmar que nem sempre o pecado vem com cara de tentação- às
vezes, ele se disfarça de desânimo, pressão, ingratidão ou naquela palavrinha “só estou sendo realista”. É necessário
reconhecer o valor do pão sem absolutizá-lo, e reconhecer a realidade da pedra sem, igualmente, absolutizar o
sofrimento. Pois, nem tudo é pão, da mesma forma que nem tudo é pedra.
Ah, quanto de cedição à tentação há em olhar a vida e só enxergar dor, tristeza, murmuração e amar
Drumond só por causa da “Pedra no caminho”! Desconsidera-se se o poema fora escrito por causa das discussões
acadêmicas entre linguistas ou gramáticos. Gramática escorreita não mata fome; pão mata. E isso vale até para os
professores da língua portuguesa!
Transformar pão em pedra é contracultural, principalmente porque esta passagem bíblica é popular. Porém,
é mais ainda contra-cristã, uma vez que ladrilha o caminho da vida só com ingratidão e incredulidade.
A proposta de Satanás é respondida por Jesus com uma hermenêutica textual e de vida em suas totalidades.
O Senhor repete Deuteronômio 8:3 não apenas textualmente, mas, repete-o em Sua Pessoa o momento histórico.
Mas, agora, como o Israel, o Filho Verdadeiro de Deus! Contudo, Jesus padece de iguais necessidades, como Israel
(Os 11.1 cf: Mt2.15)
Não é interessante que, no texto vetero-testamentário, Deus retira de seu povo o essencial (o pão) para
ensinar, justamente, que há algo ainda mais essencial? A necessidade mais urgente do seu povo serve para levá-lo a
transcender a realidade imediata, rasgar o concreto e parar naquilo que sustenta-nos mais do que o trigo- Deus. Não
foi através da fartura, mas da falta, no vazio do estômago, que Jesus provou a suficiência da Palavra. Antes de comer
o pão dos anjos (Mt 4.11) Ele teve de saborear o pão de pedra de Satanás.
Que bom que você não tem sucumbido à ideia de transformar pedra em pão. Mas, eu ficaria igualmente feliz
se você também não esteja transformando pão em pedra. Caso esteja, seria o mesmo que transformar pedra em
pão. Não seria isso, igualmente, um antimilagre?
Eliandro Cordeiro
Maringá, 29, jun, 2025.
Que pão e pedra sejam só pão e pedra.