
A extraordinária ressurreição de Jesus e a ‘basicalidade’ da vida: “Ocês qué cumê?”
“[…] Filhos, tendes aí alguma coisa de comer?” (João 21.5)
Em Cristo Jesus, o extraordinário e o ordinário da existência caminham juntos, indistintamente.
É interessante o modo como o Senhor vê a existência por Ele mesmo criada. Cristo não se coloca distante, indiferente ao mundo criado. Antes, sente prazer no que criou, ao ponto de valorizar a necessidade de comer.
Ora, mesmo depois que a Vida devora a Morte e se mostra, Aquela se apresenta aos discípulos e implica-lhes a necessidade de comerem depois de uma noite de trabalho. Esses homens precisam comer! Interessante a narrativa do apóstolo João.
Os discípulos estão diante do Deus-Homem. Tudo o quanto o Senhor falou é agora entendido: Ele ressuscitou. É todo um cenário de deslumbramento, sonho real. É tudo muito mais que o mysterium tremendum et Fascinans[1]. De repente todo o encantamento dos discípulos é atravessado por uma pergunta absurdamente básica e que parece fora do lugar: “tem comida?” Confesso que o cenário contado por João me lembra uma visita à casa de mineiros: “Ocê qué cumê?”
Se tem algo que me encanta nas Escrituras é a “relação absurdamente natural” entre o extraordinário e o ordinário. Na verdade, segundo a Bíblia, essa relação deve ser extinta. Deus nunca esteve ausente de sua criação. Ele está mexendo nela, mudando, transformando, dirigindo para um fim que O glorifica (Jo 5.17).
Logo, a vida não é um mover-se no extraordinário nem no ordinário; é um existir para Deus. Karl Barth explicou que
Os apóstolos não se contentaram em descrever e defender uma experiência puramente interior. Eles falaram do que viram com seus olhos, do que ouviram com seus ouvidos e do que tocaram com suas mãos. […] A fé é o mistério de Deus que irrompe em nosso mundo: […] Se ela não se traduzir por nenhum fato- visível e audível- não é fé (Esboço de uma Dogmática, p.29,33).
O céu está sempre lembrando ao homem a sua finitude e insuficiência: Você não vive sem comer. Mas, a vida não é só comida (Mt.4: “Nem só de pão…”).
Se se pensa que é um absurdo afirmar que extraordinário e o ordinário são quase indistintos, pode-se recorrer à oração do Senhor. Nela, o céu se uniu à terra demonstrando-se preocupado até mesmo com o pão de cada dia (Mt.6.9ss). Aquele que pede o pão pede também pelo perdão. Certamente, comer o pão perdoado tem outro sabor! O pão se torna santo porque é visto como a necessidade de se ter mais ao Senhor do que ele para viver.
Recordo-me agora de narrativas dos Evangelhos onde o Extraordinário e a basicalidade da vida ocorrem indistintamente. Não é absurda a história da ressurreição da filha de Jairo? Jesus ressuscita a garota só com a Sua Palavra. Depois “mandou que dessem à menina alguma coisa para comer” (Mc.5.43).
É um milagre que Ele acaba de fazer! Como se fosse realizado algo simples, Jesus se preocupa com a fome da garota. “Cuida da anemia dela”? Jesus atravessa o extraordinário com tudo aquilo que há de mais simples: “Come garota!”
Com uma absurda simplicidade, elaborou uma economia doméstica. Depois de multiplicar os pães e dar à multidão, Jesus atravessa o extraordinário novamente com a Sua absurda simplicidade: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca” (Jo 6.12).
Eu me pergunto de que matéria vieram os pães que se multiplicavam em suas mãos? Ao dividi-los em pedacinhos, estes se tornam um todo cada vez maior. O pão se multiplicou quando dividido! E depois deste mistério oculto em Suas Santas Mãos, Ele se preocupa com a sobra? Aquele que fez o milagre prende-se à economia doméstica?
E, se isso não basta, ao receberem a notícia que o Senhor ressuscitou, os discípulos correm ao seu túmulo vazio. Lá dentro, dobradinhos, num cantinho, têm os lençóis que Lhe envolveram o corpo. Estranho o lugar em que, ao testemunhar a maravilha das maravilhas, dois paninhos anunciam a Vitória de Deus sobre a morte: deixou a cama arrumada (Jo 20.4-7).
Ora, Aquele que pôs harmoniosamente o mundo todo em seu lugar dobra lençol! O ordinário dobra o extraordinário- a vida dobra a morte com simplicidade (Sl 33.6; Hb 1.3).
Não é estranho que, depois de andar sobre as águas, Jesus entre no barco e termina a viagem até às suas margens? Se você tivesse este poder, voltaria para o barco ou seguiria “a pé” até ao seu destino? Mas, o Deus-Homem está cansado (Jo 6.1-21). Tem algo tão mundano quanto o cansaço?
Jesus, na tentação, vence a Satanás. Logo depois é servido por um anjo, todavia, porque tem fome (Mc.1.13). Ele vence a Satanás, mas precisa comer. É o ordinário lembrando que a Vida Eterna também passa por ele. Satanás sabe que Jesus tem fome e não, mas nunca sede de poder! O ordinário divino rasga a expectativa do extraordinário imaginário humano. Deus não nos abandonou. Ele ama a basicalidade da vida! Onde Ele toca, o comum se torna extraordinário e o incomum não Lhe é desconhecido.
Ah… não encontre Jesus só no extraordinário. Veja-O nas coisas da vida comum. No pão com manteiga, no cheiro maravilhoso do café que toma toda a casa logo pela manhã. Ou no galo que canta lá longe no domingo e você se lembra que ainda tem mais um tempo para ficar na cama. Aliás, não foi este bichinho que lembrou a Pedro das palavras do Senhor (Mt 26.34,35). Extraordinário não ter sido um anjo, né?
Eliandro Cordeiro
Maringá, 26 de agosto, 2024.
Vivendo o ordinário de Deus.
[1] Se quiser ter uma maior compreensão deste assunto, poderá encontrar literatura de Rudolfo Otto, bem como diversos artigos.