O homem mau.
“Livra-me do homem mau […].” Sl 140.1
Assim começou o salmista a sua oração.
Parecia urgente. O assunto veio imediatamente, sem que sequer tenha usado
qualquer palavra de adoração como introdução à poesia para Deus.
Evidente que o saltério é uma oração para que Deus livre o salmista de um
inimigo fora dele. Tal inimigo é perverso, violento e caluniador. Pode ser uma guerra
violenta demais para se travar sem Deus, pois, não são tribulações raras na vida do
salmista.
Ao ler este salmo, pensei logo no tal “homem mau” como um ladrão e, talvez,
algum inimigo pessoal que eu tenha por aí. Claro que orei por proteção divina- quem
não faria o mesmo? Como todos os crentes, apliquei logo a urgente oração do salmista
a mim. Busquei lá fundo da alma as lutas, inimigos, males antigos ou qualquer coisa que,
como o salmo, me provoque medo.
Lembrei-me das “tretas” de Satanás contra mim (Ap 12.10). Lá no fundo, quase
inacessível, vi a sombra fúlgida de um homenzinho entranhado nas rachaduras da alma.
Ele está ali há anos e ali ficará (espero que a cada dia mais enfraquecido!) até que eu
seja aperfeiçoado Naquele Dia (Fp.1.6; 3.12), quando se apagará de vez (Ap 21.4).
Este homem que lá se oculta, ora me acusa, ora me lisonjeia; massacra-me com
os meus ‘pequenos erros’ e me engana impedindo que a balança pese a tonelada de
iniquidade da minha natureza. Tal homem mau suaviza a gravidade das automutilações
na alma, bem como a dor que o pecado me causa (Hb 3.7-13).
Eu plagiei Agostinho e usei o salmo contra mim mesmo: “Quem me livrará se tal
homem mau for eu mesmo (Rm 8.31-33)? Quem o porá portas à fora de minha alma se
o homem mau é o chefe da casa (Rm 7. 24,25)?
1
O meu saudoso amigo Quisleu costumava dizer com humor que “até sozinhos
estamos mal acompanhados.” E, de fato, nenhum inimigo é tão perigoso a nós do que a
nossa alma deixada por si mesma a meter-se de guia à consciência (Rm 12.21ss).
Jacó, sozinho, a caminho do encontro com o seu inimigo, Esaú, teme o fratricídio.
Na noite escura, decide pela solidão. Logo encontrou-se com o Homem que o fez
confessar-se enganador: “Jacó é o meu nome!”, Estranho como que, quando ficamos
face a face com Deus a gente se encontra (Gn.32.22-32).
Vemos na face divina toda a nossa ausência de ser; tudo o que não somos, bem
como, o homenzinho mau fugindo da Luz (Gn 1.26-28; Gn 32.30; 33.9-11; 2Co 3.18). Na
face de Cristo está exposto do O Homem Pleno que devemos ser. Na completude da face
divina vejo o que me falta.
Ah… essa antropologia bíblica que como um cordão dourado une a natureza
humana numa solidariedade que se salva apenas pela Natureza do Redentor (Rm 5.12-
21)!
Agostinho entendeu isso e orou,
Que sou eu para mim sem ti, senão um guia que conduz ao abismo? Ou que
sou eu, quando estou bem, senão uma criança que suga o teu leite ou frui de
1Sei perfeitamente a que este salmo se destina. Não procurei aprofundar nenhum estudo (exegético) do texto. Apenas
recorri à memória de que, posso tergiversar o texto sem que o torça. Afinal é apenas uma leitura sobre mim mesmo.
Você confia em si mesmo sem que seja Deus mais você do que você mesmo?
ti como alimento que não se corrompe? E quem é o homem, qualquer
homem, sendo homem? Mas zombem de mim os fortes e os poderosos, e
nós, fracos e desamparados, confessemo-nos a ti.” (Confissões, IV, 1,1).
Somos tão impiedosos conosco mesmos quanto Satanás o poderia ser! Somos
autodestrutivos procurando edificarmo-nos moralmente com blocos de condutas que
não nos são inerentes! Matéria insuficiente para tão grande construção! Somente
quando Deus nos tomar de nossas mãos, o homem mau que somos, se sentirá seguro,
forte, independente dos homens deste mundo que nos querem mal.
Mas, como esquecermos de nós mesmos sem que nos deixemos de amar
maltratando-nos impiedosamente? Benfazeja verdade citou Agostinho de que “Deus é
mais íntimo de mim do que eu mesmo- “interior intimo meo” (CONFISSÕES, III, 6.11).
Ora, parece lógico que quanto mais cheio da Palavra de Cristo (Cl 3.16) e mais
cheio do Espírito de Deus eu estiver (Ef 5.18,19), menos de mim mesmo existirá.
Paradoxalmente, mais autêntico serei e mais de mim mesmo terei. Caso contrário, pior
do que ter a mim mesmo como inimigo meu é ter Aquele que é mais eu do que eu
mesmo como oposto a mim; isto é, Deus.
Que Deus me liberte de mim mesmo!2
Oração:
Oh, Senhor, que está em tudo e todos, sem que estes sejam Tu Mesmo. Criador de tudo e que não é nada
do que criou; porém, “Totalmente Outro”. Habite neste homem e o ensine a ser aquele que deveria ser
como no princípio. Se o homem pudesse Te amar tanto, seria ainda tão pouco! O amor que a Ti devemos
é sempre mísero. Contrapartida, o amor que nos dás é sempre tão gracioso e imerecido que, conforme
aquela mulher, “uma migalha que nos caia de tua mesa” nos farta e nos dá a vida novamente. Oh, Deus!
Faz-nos amar-Te tanto que, ainda que tanto do nosso amor te seja apenas migalhas, Tu as recebas por
misericórdia e com afabilidade aceite-as como se suficiente. Foi assim que o Senhor recebeu aquele amor
de Pedro depois de ter negado ao teu filho três vezes. Assim, só quando devotado todo o nosso amor por
Ti nos amaremos na medida certa e não temeremos nenhum homem mau nem fora nem dentro de nossa
alma. Por Jesus, amém.3
Eliandro Cordeiro
Maringá, 02, nov; 2024
Orando para amar o que Deus ama e odiar o que Ele odeia.
2
“Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.” PESSOA,
Fernando. Páginas íntimas e de auto- interpretação, Lisboa: Ática, 1966, p.61.
3 Esta oração é baseada nas seguintes passagens bíblicas: Jo 1.1-17; At 17.28; Is.57.15; Is 46.5,9; Ef. 4.13-
16; Dt 6.5; Mt 22.37-39; 1Jo 3.1-24; 4.19; Rm 8.35-39; Mt 15.21-28; Jo 21.15-22; Sl 142;